Monday, September 27, 2010

Belfagor

"Todos aqueles príncipes do Inferno estavam de acordo em que era necessário descobrir a verdade. Decidiram mandar um deles ao mundo, para ali pessoalmente a conhecerem, sob a forma humana. A sorte recaiu sobre Belfagor, arquidiabo, que anteriormente – antes de cair do Céu – tinha sido arcanjo".

O florentino Nicolau Maquiavel (1469-1527), diplomata, homem de Estado, historiador e escritor, tornou-se um nome consagrado (a ponto de dar origem ao adjectivo “maquiavélico”) como autor de “O Príncipe”, obra que é um marco do Renascimento italiano, até hoje indispensável nos estudos das ciências políticas. Belfagor, a sua única história curta conhecida, está presente em várias antologias do humor universal.
Nicolau Maquiavel

Nas antigas memórias das crónicas de Florença lê-se uma história relacionada a um homem santíssimo que, em meio à devassidão da época, era muito respeitado por todos os seus contemporâneos. Certo dia, absorto nas suas piedosas meditações, conseguiu ver que as almas dos infelizes mortais que morriam pecadores e que iam para o inferno lamentavam – se não todos, pelo menos a maior parte – que a razão de tal desdita devia-se ao facto de se terem casado. Minos eRadamanto, junto com outros juízes do Inferno, ficaram deveras admirados e, não podendo dar crédito às calúnias que tais almas lançavam ao sexo feminino, deram ciência disso a Plutão, tanto mais que tais lamentações não paravam de crescer. Plutão, então, deliberou examinar o caso de perto com todos os príncipes do Inferno para, só depois, tomar partido do que fosse julgado o mais conveniente para descobrir a falácia e saber a verdade por inteiro. Convocou-os, pois, ao conselho, e falou nos seguintes termos:

– Embora eu, meus dilectos amigos, por disposição celeste e vontade do destino, e ainda que me encontre acima do juízo de Deus e dos homens, no entanto, como maior prova de sabedoria eprudência, resolvi consultar-vos hoje sobre a conduta que devo seguir num caso que poderiaredundar em infâmia para o nosso império. Todas as almas dos homens que entram no nosso reino pretendem ter sido causa disso a própria mulher, o que não nos parece possível. Condenando tal afirmação, talvez os levianos nos acusem de maldade; caso não o fizermos, talvez os injustos nos considerem demasiado indulgentes e pouco afeitos à justiça. Querendo evitar uma e outra acusação, e não encontrando um meio para tal, decidimos convocar-vos a fim de que nos ajudeis com os vossos conselhos e façais com que este reino continue a viver sem infâmia, como sempre tem vivido.

Nenhum daqueles príncipes das trevas deixou de considerar o caso importantíssimo e de grandemonta. Estavam todos de acordo em que era necessário descobrir a verdade, mas discordavamquanto à maneira de assim proceder. Alguns julgavam que se devia mandar um deles ao mundo,outros que vários, para ali pessoalmente conhecerem, sob a forma humana, qual era a verdade. Aoutros parecia desnecessário tal transtorno: bastaria obrigar algumas almas, por meio de diversos tormentos, a confessá-la.

No entanto, como a maioria optasse pela primeira opinião, foi essa a adoptada. Mas ninguém seofereceu voluntariamente para a empreitada; assim, recorreram eles a um sorteio. A sorte recaiusobre Belfagor, arquidiabo, que anteriormente – antes de cair do Céu – tinha sido arcanjo.

Foi com relutância que ele aceitou o encargo, mas o poder de Plutão o constrangera a executar oque o conselho deliberara, e teve assim de consentir nas condições solenemente aceitas por todos. Fora deliberado que aquele em quem recaísse a sorte receberia imediatamente cem mil ducados, e com eles viria nascer no mundo. A casar-se sob a forma de um homem e a viver com a mulher dez anos; depois, fingindo morrer, voltaria e exporia aos seus superiores a própria vivência, quais eram os encargos e os incómodos do casamento. Deliberou-se também que, durante o tempo em apreço, ele ficaria submetido a todos os achaques e males a que os homens estão sujeitos, inclusive a pobreza, a prisão, as doenças e todas as desgraças que aos mortais ocorrem, salvo se por meio de engano e astúcia conseguisse livrar-se delas.

Aceitas pois as condições e os ducados, foi-se Belfagor ao mundo e, devidamente provido decavalos e acompanhantes, entrou ele em Florença com o maior aparato. Escolhera esta cidade para domicílio, entre todas as demais, por lhe parecer a mais plausível para quem quisesse viverempregando o seu dinheiro em negócios. Fez-se chamar Rodrigo de Castela e alugou uma casa no bairro de Todos os Santos [Ognissanti]. Para que não pudessem descobrir-lhe os antecedentes, disse ter partido da Espanha ainda criança; dali fora à Síria e a Alepo, onde ganhara tudo o que possuía; de lá viajara para a Itália, a fim de se casar num lugar mais humano e mais conforme à vida civilizada e à sua própria índole.

Era Rodrigo um moço formoso, que aparentava trinta anos. Em poucos dias demonstrara ele quantas riquezas tinha e dera provas da sua liberalidade e humanidade; logo vários cidadãos nobres, providos de muitas filhas e pouco dinheiro, lhe ofereceram os seus préstimos. Entre todas, Rodrigo escolheu uma belíssima donzela chamada Honesta, filha de Américo Donati, que tinha mais três filhas, quase em idade de se casar, e três filhos já adultos. De família muito nobre e tido em bom conceito em Florença, era no entanto muito pobre, levando-se em conta a sua numerosa prole e a sua condição.

Rodrigo celebrou as suas núpcias com esplendor e grandeza, não descuidando de nada que seja
necessário em tais circunstâncias, pois entre as obrigações que lhe foram impostas ao sair do Inferno, estava a de sujeitar-se a todos os caprichos humanos; assim, logo passou a deleitar-se com as honrarias e pompas do mundo e a gostar de ser louvado entre os homens, coisas que o levaram a grandes gastos. Por outro lado, não tardou muito a apaixonar-se perdidamente por sua D. Honesta e quase não conseguia viver quando a encontrava triste ou aborrecida.

Com a sua nobreza e formosura, a senhora Honesta levara consigo para a casa de Rodrigo um orgulho tão desmesurado que mesmo Lúcifer não o tivera igual. Rodrigo, que podia comparar um e outro, considerava o da sua mulher infinitamente superior, e consta que ainda chegou a ser maior quando percebeu o amor que seu marido sentia por ela. Imaginando ser por todas as maneiras a dona absoluta, dava as suas ordens sem consideração ou piedade, e se ele relutasse a fazer as suas vontades, desatava em recriminações e injúrias, o que era para o pobre Rodrigo motivo de viva pena e aflição. Sem dúvida, por consideração ao seu sogro, aos seus cunhados e demais parentes, por respeito aos deveres do casamento e pelo amor que dedicava à esposa, sofria os seus males com a maior paciência. Quero passar em silêncio sobre os grandes gastos a que era obrigado para contentá-la, vestindo segundo os novos costumes e as modas mais recentes, que a nossa cidade varia por hábito natural; nem lembrarei que, para ela o deixar em paz, teve ele de ajudar o sogro a casar as outras filhas, o que lhe fez despender também considerável importância. Depois, querendo manter-se em boa paz com a mulher, consentiu em mandar um dos irmãos dela ao Oriente com casimira, e outro para o Ocidente levando sedas, ao passo que para o terceiro irmão abriu em Florença uma oficina de ourives, em que despendeu a maior parte do dinheiro que possuía. Além disso, nas festas de Carnaval e de S. João, celebradas pela cidade inteira segundo tradição antiga, quando grande número de cidadãos nobres e ricos se honravam uns aos outros com magníficos banquetes, D. Honesta, para não ficar atrás de outras damas, queria que o seu Rodrigo superasse a todos os demais com as suas festas.

Tudo isto, suportava-o Rodrigo pelos motivos supracitados; apesar de gravíssimas, nem graves as teria achado se houvessem introduzido a paz em sua casa, permitindo-lhe aguardar em sossego o momento de sua própria ruína. Mas foi o contrário o que aconteceu, pois a índole insolente da esposa, além das despesas insuportáveis, carrearam-lhe inúmeros aborrecimentos. Nenhum criado a aguentava, não digo por muito tempo, mas nem sequer por alguns dias. Para Rodrigo era o mais duro dos incómodos não possuir um criado que tivesse amor à sua casa. Os próprios diabos que trouxera consigo como domésticos preferiram voltar aos fogos do Inferno a viver no mundo sob as ordens daquela mulher.

Assim prosseguia a vida tumultuada e inquieta de Rodrigo. Tendo já consumido nos gastos desenfreados o que recebera em espécie, começou a viver à espera das entradas financeiras que aguardava do Ocidente e do Oriente. Como ainda tivesse bom crédito, pediu dinheiro emprestado para não ficar aquém da sua condição; e já certo número de letras sacadas por ele circulavam na praça, o que logo foi percebido pelos que trabalhavam neste ramo de negócios. Já era bem precária a situação de Rodrigo quando, de súbito, chegaram notícias do Oriente e do Ocidente: aqui, um dos irmãos de D. Honesta perdera no jogo todo o dinheiro de Rodrigo; ali, o outro, ao voltar de um navio carregado de suas mercadorias, que não estavam no seguro, naufragou com toda a carga.

Mal estas novas circularam pela cidade, os credores de Rodrigo reuniram-se. Consideravam-no um homem liquidado, mas ainda não podiam tomar providências por não haver expirado o prazo das cobranças; resolveram, pois, que mandariam quem o observasse habilmente, para que num abrir e fechar de olhos não resolvesse fugir. Por sua parte, Rodrigo, sem ver outro remédio e sabendo das obrigações de seu pacto infernal, decidiu fugir a todo o transe. Certa manhã montou a cavalo e saiu da cidade pela porta do Prato, perto da qual residia. Espalhada a notícia da sua fuga, os credores recorreram alarmados às autoridades e puseram-se no encalço dele, acompanhados não apenas de meirinhos como também de muitos populares.

Mal se distanciara da cidade cerca de uma milha, souberam eles da sua fuga, de sorte que, vendo-se perdido, resolveu Rodrigo, para melhor se esconder, abandonar a estrada principal e tentar a sorte em outras direcções; porém o terreno árduo e abrupto dificultava tremendamente a sua marcha. Percebendo que era impossível seguir a cavalo, decidiu-se salvar-se a pé mesmo, deixando o animal no meio do caminho, e depois de ter muito tempo andado por entre vinhas e canaviais que cobriam os campos, aproximou-se de Pretola, detendo-se na casa de Giovanni Matteo de Bricca, um dos colonos de Giovanni dei Bene. Felizmente àquela hora chegava também ao local o próprio Giovanni Matteo para alimentar o gado. A ele se recomendou o fugitivo, prometendo-lhe que, se o salvasse dos inimigos que o perseguiam para fazer com que morresse na prisão, o tornaria rico, coisa que lhe daria prova antes mesmo de sair de sua casa; se não o fizesse, concordaria que o próprio camponês o entregasse aos seus adversários.

Embora simples camponês, era Giovanni Matteo homem de coragem. Pensou que nada tinha a perder se tentasse salvá-lo, e prometeu-lhe auxílio. Em frente à casa havia um monte de estrume: foi lá que o escondeu, cobrindo-o de caniços e ramos colhidos para fazer fogo.

Mal acabara Rodrigo de esconder-se, os seus perseguidores chegaram. Por mais ameaças que fizessem a Giovanni Matteo, não conseguiram fazê-lo confessar o que tinha visto. Assim, partiram, e depois de procurá-lo todo aquele dia e mais o seguinte, retomaram exaustos para Florença.

Afastada a agitação, Giovanni Matteo tirou Rodrigo do esconderijo e pediu-lhe que cumprisse a promessa, ao que Rodrigo lhe disse:

– Irmão meu, tenho uma grande obrigação para contigo e desejo cumpri-la de qualquer maneira; e para que acredites em que eu possa fazer, vou dizer-te quem sou.

Revelou assim a sua identidade, contando em que condições saíra do Inferno e como se casara. Em seguida, explicou-lhe como pretendia fazê-lo rico. O seu plano, resumindo, era o seguinte: quando Giovanni Matteo soubesse que alguma mulher estava tomada pelos espíritos, devia saber que era ele, Rodrigo, que se apoderara dela; não sairia do corpo da vítima sem que Giovanni Matteo viesse a tirá-lo. Assim, poderia o camponês pedir aos parentes da endemoninhada o preço que bem entendesse. Giovanni Matteo aceitou a proposta e Rodrigo partiu.

Decorridos alguns dias, propagou-se por toda a Florença a notícia de que a filha de mestre Ambrósio Amadei, casado com Bonaiuto Tebalducci, estava tomada pelos maus espíritos. Não descuidaram os parentes de nenhum dos remédios a que se recorria em casos semelhantes;assim, puseram-lhe na cabeça o crânio de S. Zenóbio e o manto de S. João Gualberto. Rodrigo, no entanto, zombava de tudo aquilo. E para dar a entender a todos que o mal da moça era um espírito e não qualquer imaginação fantástica, falava em latim, discutia coisas de filosofia, descobria os pecados de muita gente, desmascarando-os, entre outros, a um frade que guardara em sua cela durante mais de quatro anos uma mulher vestida à maneira de um fradinho, coisas que a todos enchiam de espanto. Estava Mestre Ambrósio irritadíssimo e, havendo experimentado em vão todos os remédios, perdera já a esperança de curar a filha, quando Giovanni Matteo veio ter com ele, prometendo-lhe a saúde da filhinha se lhe dessem quinhentos florins para comprar uma propriedade em Pertola. Mestre Ambrósio aceitou a proposta. Então Giovanni Matteo, depois de mandar dizer certo número de missas e executar certas cerimónias para embelezar a coisa, aproximou-se da moça e segredou-lhe ao pé do ouvido:

– Rodrigo, aqui estou eu esperando que me cumpras a promessa.

Ao que Rodrigo respondeu:

– Com o maior prazer. Mas isto não chega ainda a te tornar rico. Eis por que, apenas saído daqui, entrarei na filha do rei Carlos de Nápoles, e de lá não sairei sem que me chames. Exigirás então uma recompensa segundo a tua vontade, e depois disso não deverás mais me importunar.

Saiu assim do corpo da moça doente, para a alegria e admiração de toda a Florença.

Não tardou e espalhava-se por toda Itália a mesma desgraça ocorrida, desta vez com a filha do rei Carlos. Como os remédios dos frades de nada adiantassem, o rei, que ouvira falar em Giovanni Matteo, mandou que ele fosse conduzido até ele. Chegando a Nápoles, o camponês, depois de algumas cerimónias de fachada, curou-a. Mas antes de sair do corpo da princesa, Rodrigo disse-lhe:

– Bem vês que cumpri a minha promessa de enriquecer-te. Agora que recompensei o serviço que me fizeste, nada mais te devo; assim, aconselho-te a que não mais apareças à minha frente, pois se te fiz benefícios até aqui, daqui por diante poderia causar-te dissabores.

Giovanni Matteo retornou a Florença muito rico, pois o rei lhe havia dado mais de 50 mil ducados, e não pensava senão em desfrutar da sua riqueza, com muito gosto e sossego, sem cogitar que Rodrigo pudesse, em qualquer época, lhe causar algum dissabor. Bem cedo, no entanto, se desiludiu, ante a notícia de que uma filha de Luís VIl, rei da França, estava possuída pelo demónio. Notícia essa que tumultuou de todo a alma de Giovanni Matteo, que não conseguia parar de pensar na autoridade daquele monarca e nas palavras que lhe dissera Rodrigo. De facto, o rei, não encontrando remédio para o mal de sua filha, e tendo ouvido falar da capacidade de Giovanni Matteo, mandou chamá-lo, primeiro através dos correios, simplesmente; mas em vista de que o homem alegava certa indisposição, viu-se o rei forçado a recorrer ao governo de Florença, o qual obrigou Giovanni Matteo a obedecer.

Desesperado, foi Giovanni para Paris, onde foi logo explicando ao rei que efectivamente curarajá certas pessoas endemoninhadas, mas que isso de modo algum significava que soubesse ou pudesse curá-las todas, pois algumas havia de natureza tão pérfida que não temiam ameaças nem encantamentos, nem religiões, seja qual for; que, no entanto, estava disposto a fazer o que pudesse, mas pedia desculpa e perdão se não viesse a ser bem-sucedido. Enfastiado, o rei declarou que, se não lhe curasse a filha, mandaria enforcá-lo. Viu-se Giovanni Matteo em péssimos lençóis, mas fez de sua fraqueza sua força: mandou vir a possuída e, aproximando-se-lhe do ouvido, recomendou-se humildemente a Rodrigo, lembrando-lhe o benefício prestado e como seria ingrato se o desamparasse naquele imbróglio. Rodrigo então assim reagiu:

– Traidor infame! Como te atreves a aparecer perante mim? Acreditas que podes te vangloriar de ter enriquecido à minha custa? Pois hei de mostrar-te a ti e a todos que sei muito bem dar e tomar qualquer coisa, como melhor me prover; e antes que partas daqui, farei enforcar-te, custe o que custar.

Dando-se por perdido, Giovanni Matteo, não vendo outro remédio, resolveu arriscar a sorte por
outro meio. Mandou que levassem dali a possuída e disse ao rei:

– Senhor, como falei a Vossa Majestade, há espíritos tão malignos que com eles ninguém pode; pois este é um dos tais. Mas quero fazer uma última tentativa: se for bem-sucedido, Vossa Majestade e eu teremos alcançado o nosso objectivo; caso contrário, estarei nas mãos de Vossa Majestade, que saberá ter comigo a compaixão que faz jus à minha inocência. Ordene Vossa Majestade que se erga na Praça de Notre Dame um grande palco onde caibam todos os barões e todo o clero desta cidade; mande orná-lo de panos de seda e de ouro, e mande erguer no meio dele um altar. Preciso que no domingo próximo Vossa Majestade se reúna no estrado do palco com todos os seus príncipes e barões, numa pompa real, vestidos de trajes ricos e esplêndidos. Depois da missa celebrada, Vossa Majestade fará vir a possuída. Preciso, além disso, que num ângulo da praça haja pelo menos vinte pessoas reunidas com trompas, cornetas, tambores, cornamusas, címbalos, timbales e outros instrumentos de toda sorte.

Quando eu erguer o chapéu todos deverão tanger os seus instrumentos e encaminhar-se na direcção do estrado. Estas coisas, juntas com alguns remédios secretos, poderão fazer, julgo eu, com que o espírito maligno desapareça.

Tudo isso o rei ordenou. Chegou a manhã de domingo. O palco improvisado estava cheio de personalidades, e a praça, cheia do povo. Celebrada a missa, a endemoninhada foi conduzida ao estrado por dois bispos e muitos senhores. Ao ver tamanha multidão e tanto aparato, Rodrigo ficou meio tonto e disse consigo mesmo: "Que será que inventou esse traidor miserável? Será que está a pensar me espantar com toda essa pompa? Ignora que estou acostumado a assistir as pompas do Céu e fúrias do Inferno? Haverei de castigá-lo de qualquer maneira." Assim, logo depois que Giovanni Matteo se aproximou novamente e lhe pediu que saísse, Rodrigo assim lhe falou:

– Bela ideia a tua, para dizer a verdade! Que pensas alcançar com todo este aparato? Acreditas
escapar assim ao meu poder e à ira do rei? Ladrão miserável, farei com que te enforquem haja o que houver!

Como não parasse de dizer tais palavras, acrescentando-lhes outras menos injuriosas, Giovanni Matteo houve por bem não perder mais tempo. Ergueu o chapéu, todas as pessoas encarregadas de fazer barulho tocaram os seus instrumentos e com um rumor que atingia o Céu foram-se aproximando do estrado. O barulho aguçou os ouvidos de Rodrigo que, sem entender do que se tratasse, pediu assombrado que Giovani Matteo lho explicasse, e Giovanni respondeu-lhe de forma bem perturbada:

– Ai, meu Rodrigo, é a tua mulher que vem te buscar!

Foi, em verdade, maravilhoso ver até que ponto Rodrigo se horrorizou ao ouvir o nome da sua mulher. Tamanho lhe foi o espanto que, sem indagar a si mesmo se seria possível que ela ali estivesse, fugiu sem dizer uma palavra e assim deixou a princesa livre; preferiu voltar ao inferno para dar conta de suas acções a submeter-se outra vez ao jugo matrimonial, suportando tantos desgostos, aborrecimentos e perigos.

E eis aqui como Belfagor, de volta ao Inferno, pôde dar testemunho dos males que uma mulher leva consigo a um lar, e como Giovanni Matteo, que foi mais astuto do que o diabo em pessoa, pôde retornar a sua casa cheio de alegria.

Retirado de “Os Cem Melhores Contos de Humor da Literatura Universal”, seleção, introdução, tradução e notas Flávio Moreira da Costa. Edição Ediouro
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Nicolau Maquiavel

Nicolau Maquiavel (Florença, 3 de maio de 1469 - Florença, 21 de junho de 1527) foi um historiador, poeta, diplomata e músico italiano do Renascimento. É reconhecido como fundador do pensamento e da ciência política moderna. O adjectivo maquiavélico, criado a partir do seu nome, significa esperteza, astúcia.

Maquiavel viveu a juventude sob o esplendor político de Florença durante o governo de Lourenço de Médicis e aos 29 anos de idade assumiu o cargo de Secretário da Segunda Chancelaria. Nesse cargo, Maquiavel observou o comportamento de grandes nomes da época e a partir dessa experiência retirou alguns postulados para a sua obra. Depois de servir em Florença durante 14 anos foi afastado e escreveu suas principais obras. Conseguiu também algumas missões de pequena importância, mas jamais voltou ao seu antigo posto, como desejava.

O "Príncipe" é provavelmente a sua obra mais conhecida e foi completamente escrito em 1513, apesar de publicado postumamente, em 1532.

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